Patrono da educação, por que Paulo Freire ainda incomoda tanta gente?

Mural retratando o pedagogo pernambucano na Universidade do Bío-Bío, no Chile (Foto: Divulgação)

15 de outubro de 2023

16:10

Yana Lima – Da Agência Amazônia

MANAUS (AM) – Paulo Freire, um renomado pedagogo reconhecido internacionalmente, é considerado o patrono da educação brasileira pela sua contribuição para a formação de uma sociedade mais crítica, baseada, principalmente, na alfabetização dos mais vulneráveis. Isso é o que o torna alvo de insultos contundentes, sobretudo de setores alinhados à extrema-direita, segundo especialistas em educação entrevistados pela AGÊNCIA AMAZÔNIA.

Eles apontam que Paulo Freire gera desconforto devido à sua defesa da educação pacífica, crítica e libertadora. Na avaliação dos especialistas, essa abordagem, chamada de “doutrinação”, confronta princípios fundamentalistas. Ter seu legado constantemente contestado exemplifica, segundo eles, o que o próprio educador enfatizava: a importância da educação na formação de uma sociedade mais crítica.

O educador Paulo Freire. (Divulgação)

Um exemplo destas críticas ocorreu em 2019, quando o então então presidente da República Jair Bolsonaro (PL), chamou o educador de “energúmeno”. Na ocasião, ele também declarou que a programação da TV Escola — canal de televisão do Ministério da Educação que capacita, aperfeiçoa e atualiza educadores da rede pública desde 1996 — “deseduca”.

Para o professor da Universidade Federal de Roraima (UFRR) Simão Almeida, doutor em Letras, que atualmente desenvolve projeto de pós-doutorado que aborda o negacionismo, a extrema-direita tende a se incomodar com Freire devido ao caráter pacífico e de construção de cultura de paz da educação, que contrasta com a cultura militarista que muitas vezes predomina entre setores extremistas.

Como Paulo Freire é o maior símbolo da educação no Brasil, é por isso que ele costuma ser atacado pelos extremistas de direita, porque a própria imagem reverberada de Paulo Freire na sociedade é uma imagem de paz. Seus livros, suas frases que são compartilhadas e massificadas, instituem uma cultura de paz. Daí que Paulo Freire é tão atacado pelo extrema-direita no Brasil”, pontua Almeida.

Paulo Freire é a segunda figura, da esq. para a dir., nesta escultura de 1976 de Nye Engström. A obra fica em Estocolmo, na Suécia. (Foto: Bergnt Oberger/ CC)

Já a professora Míriam Amaral, doutora em educação inclusiva da Escola de Aplicação da Universidade Federal do Pará (UFPA), destaca que o embate entre o educador e a extrema-direita é enraizado no fato de que Freire promoveu uma educação libertadora, pautada na conscientização e emancipação das camadas mais pobres.

Essa abordagem desafiava o chamado “ensino bancário”, que tratava o estudante como mero receptor de conhecimento. A estratégia de Freire tornou-se uma ameaça para grupos de direita, especialmente a elite, pois promovia uma educação que libertava as pessoas da alienação imposta pelas classes dominantes.

Entendo que Paulo Freire é uma grande referência, sobretudo, na pedagogia, e uma fonte de inspiração para nós, professores e professoras, que defendemos uma educação voltada para a classe trabalhadora, conscientizando politicamente e pedagogicamente nossos estudantes para se tornarem sujeitos de sua própria história. Assim como nós, professores que defendem esse ativismo na resistência, compreendemos que a educação deve colaborar com os movimentos sociais populares, tanto no campo quanto na cidade”, defende Míriam.

Principal obra de Freire, “Pedagogia do Oprimido”, foi publicado em 1974. (Foto: Reprodução)

Na mesma linha, Luiz Roberto Coelho Nascimento, professor doutor em economia na Universidade Federal do Amazonas (Ufam), analisa como a extrema-direita preza pela ordem e a hierarquia na educação, enquanto o método de Freire encoraja a reflexão crítica e a autonomia do aluno, o que contraria aquela visão.

Para a extrema-direita, a abordagem de Freire pode ser percebida como uma ameaça à sua concepção tradicional de educação”, opina Nascimento.

Quadro retrata Paulo Freire (Foto: CEFORTEPE / Luiz Carlos Cappellano/Reprodução)
Quem foi Paulo Freire?
Paulo Freire nasceu em 19 de setembro de 1921, em Recife (PE), e faleceu em 2 de maio de 1997, em São Paulo (Foto: Reprodução)

Paulo Freire desempenhou um papel fundamental na história da educação. Sua jornada começou em 1921, no Recife, onde iniciou a formação em Direito na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). No entanto, foi sua paixão pela filosofia da educação que o levou a abandonar a ideia de se tornar advogado, optando por seguir a carreira de professor de língua portuguesa. A relevância de sua contribuição se torna evidente ao observar que ele recebeu mais de 40 títulos de Doutor Honoris Causa de universidades de prestígio, como Oxford, Harvard e Cambridge.

O método inovador de ensino de Freire focou na alfabetização de pessoas carentes, uma abordagem que rompeu com os moldes tradicionais da educação. Ele advogava por uma educação libertadora, que capacitasse os alunos em vez de apenas transmitir conhecimento. Esse enfoque era uma crítica à educação hierárquica e “bancária”, na qual o professor detinha o saber e os alunos eram meros receptores passivos.

Freire propunha um método de ensino dialógico, no qual os alunos eram capacitados com base em suas necessidades reais, estabelecendo uma educação que visava à liberdade e à humanização. Seu impacto na educação brasileira e global é inegável, influenciando educadores em todo o mundo.

Seus métodos e filosofia o tornaram influente nas universidades mais importantes do planeta, como Universidade de Oxford Universidade de Cambridge, além de outras 18 melhores universidades do planeta, segundo o pesquisador Andre Azevedo da Fonseca.

Hostilidade histórica
Paulo Freire foi alvo da ditadura militar (Foto: Divulgação)

O legado de Paulo Freire também é marcado por uma forte hostilidade, especialmente por parte da extrema-direita. A origem desse antagonismo remonta a 1963, quando Freire e colegas pedagogos desenvolveram um método de alfabetização que possibilitou a adultos que trabalhavam nos canaviais do Rio Grande do Norte aprenderem a ler e escrever em apenas 40 horas. Esse sucesso inspirou a criação do Plano Nacional de Alfabetização, mas o golpe militar de 1964 interrompeu o projeto.

O educador brasileiro ainda ficou preso por mais de 70 dias, durante o regime militar, sob a justificativa de doutrinação marxista. Os militares temiam que o ensino para as populações carentes pudesse fomentar revoltas à medida que adquirissem conhecimento.

Essa noção de que o saber empodera foi reforçada por Paulo Freire em sua obra “Pedagogia do Oprimido” (1968), escrita enquanto estava exilado no Chile. Nesse livro, ele argumentava que a educação era a chave para a libertação das camadas mais pobres.