Pesquisas científicas apontam que militares sabotam proteção da Amazônia e dos indígenas

Militares em terra indígena (Divulgação)

22 de janeiro de 2024

22:01

Lucas Ferrante – Especial para a Agência Cenarium*

MANAUS (AM) – Pesquisas publicadas em periódicos científicos têm revelado que durante o governo de Jair Bolsonaro houve uma atuação prejudicial por parte dos militares em relação à Amazônia e aos povos indígenas. Dois artigos científicos, publicados na respeitada revista científica Die Erde, editada pela Associação Geográfica de Berlim, destacam essas preocupantes questões.

Durante a gestão de Bolsonaro, que pertencia ao Partido Liberal (PL), foi adotada uma política de militarização de órgãos responsáveis pela proteção ambiental e indígena, como o Ibama e a Funai. Os estudos compilaram informações sobre ações em que os militares enfraqueceram a fiscalização em áreas de preservação, terras devolutas na Amazônia e terras indígenas.

Militares do Exército em Terra Indígena Yanomami (Reprodução/Ministério da Defesa)

Um dos artigos também revelou que o ex-ministro do Meio Ambiente do Governo Bolsonaro, Ricardo Salles, chegou a sugerir aproveitar a atenção da mídia durante a pandemia de Covid-19 como uma oportunidade para enfraquecer a legislação ambiental. O artigo da Die Erde argumenta que tanto a pandemia quanto a militarização da proteção ambiental no Brasil foram usadas para obscurecer ações que enfraqueciam as proteções ambientais e ameaçavam os direitos dos povos indígenas.

Em janeiro de 2020, durante uma reunião em Davos, líderes empresariais manifestaram preocupações ao então ministro da Economia do Brasil, Paulo Guedes, sobre as políticas ambientais do País. Como resposta, Bolsonaro criou o Conselho da Amazônia, composto por 19 militares e excluindo órgãos ambientais, sociedade civil, organizações indígenas e institutos de pesquisa. Esse conselho foi presidido pelo ex-vice-presidente, general Hamilton Mourão, do Partido Republicanos.

Além disso, durante uma reunião ministerial em abril de 2020, Ricardo Salles sugeriu que seus colegas ministros aproveitassem a atenção da mídia na pandemia para desmantelar regulamentações e legislações ambientais, referindo-se a isso como “passar a boiada”.

Em julho de 2020, após o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) divulgar dados sobre o aumento do desmatamento, a chefa do programa de monitoramento do desmatamento do Inpe foi exonerada.

Além disso, os militares que deveriam combater o desmatamento na região amazônica evitaram operações em áreas que concentravam o desmatamento e prejudicaram fiscalizações ambientais, conforme relatos de fiscais do Ibama.

Um dos estudos científicos também apontou que os militares distribuíram cloroquina como tratamento para a Covid-19 aos povos indígenas, apesar de evidências científicas de sua falta de eficácia. Estudos publicados em renomadas revistas, como The New England Journal of MedicineScienceNature Medicine e Journal of Public Health Policy, destacaram a vulnerabilidade dos povos indígenas à Covid-19 e como as ações do Governo Bolsonaro agravaram essa vulnerabilidade.

Militar entrega cesta básica à indígena (Reprodução/Ministério da Defesa)

Em um estudo adicional publicado no periódico Land Use Policy foi destacado que invasores estavam utilizando a Covid-19 como arma contra comunidades indígenas invadidas na região da rodovia BR-319, obra que carece da consulta prévia, livre e informada dos povos afetados, como estabelece a Convenção 169 da OIT, a qual o Brasil é signatário, e a própria legislação do País que incorporou a convenção como lei.

A falta de fiscalização durante o Governo Bolsonaro, por parte do Conselho da Amazônia, liderado pelo general Hamilton Mourão, e da Funai, liderada por um militar, o coronel da PM Marcelo Augusto Xavier da Silva, também foi evidenciada. Unidades de Conservação (UCs) sob o comando do coronel, Homero de Giorge Cerqueira, também sofreram aumento de invasões e desmatamento, sem ação do governo federal para impedir.

Como solução, os artigos científicos ressaltam a importância de uma considerável desmilitarização dos órgãos de proteção ambiental e indígena, tais como Ibama, ICMBio e Funai, medida que já foi parcialmente adotada pelo presidente Lula em sua gestão. Além disso, os estudos sublinharam a necessidade de reforçar essas agências de fiscalização, assegurando recursos adequados para capacitar os fiscais a desempenhar, eficazmente, suas funções. É relevante mencionar que esta última questão ainda demanda atenção, uma vez que o Ibama e o ICMBio encontram-se em greve devido a reivindicações não atendidas pelo governo federal até o momento. A principal demanda se concentra em melhorias na carreira dos especialistas em meio ambiente.

Os funcionários propuseram a introdução de um incentivo financeiro para atividades consideradas de risco. Além disso, eles solicitam a inclusão dos servidores no programa de Indenização de Fronteira, um benefício destinado a compensar aqueles que desempenham suas funções em locais estratégicos, caracterizados por acesso difícil, condições inóspitas e adversidades.

Um estudo publicado em 2022 na revista Science expôs a negligência das autoridades em relação à Terra Indígena Yanomami (TIY), que havia sido invadida por um contingente de mais de 20 mil garimpeiros. Já em 2023, durante o governo do presidente Lula, investigações conduzidas pela Polícia Federal e reportagens de veículos de comunicação revelaram evidências de que militares estavam recebendo pagamentos de empresas envolvidas na exportação ilegal de ouro, em conluio com atividades de garimpo ilegal na região amazônica. Adicionalmente, nos últimos meses, as operações de fiscalização das Forças Armadas contra o garimpo na Terra Indígena Yanomami e nas áreas fronteiriças foram reduzidas.

Além disso, surgiu a informação de que o Ministério da Defesa recusou-se a fornecer aeronaves do Exército para transportar uma comitiva de ministros de Estado até a Terra Yanomami, que enfrenta um agravamento da crise humanitária. É imperativo que o presidente Lula considere a nomeação de um novo titular para o Ministério da Defesa, atualmente, ocupado por José Múcio Monteiro.

Talvez, neste momento, o Brasil necessite de um ministro da Defesa que não tenha vínculos militares e que esteja disposto a conduzir investigações e tomar medidas punitivas contra indivíduos em cargos militares que estejam envolvidos ou coniventes com o aumento do desmatamento, o tráfico de ouro e a vulnerabilização das comunidades indígenas.

Leia mais: Continuidade de mortes dos Yanomami força Governo Lula a reagir ao garimpo
(*) Lucas Ferrante é biólogo formado pela Universidade Federal de Alfenas (Unifal) e mestre e doutor em biologia pelo Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa). Dentre suas diferentes áreas de pesquisa, tem pesquisado a grilagem e a invasão de terras na Amazônia, zoonoses e dinâmicas epidemiológicas.
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