Plínio Valério mente sobre BR-319 e negacionistas colocam Amazônia em novo risco pandêmico
24 de fevereiro de 2024
15:02
Lucas Ferrante – Especial para Agência Cenarium**
MANAUS (AM) – No dia 30 de janeiro deste ano, em uma publicação no periódico Nature, um dos maiores e mais respeitados do mundo, o pesquisador Guilherme Becker e eu apontamos que a pavimentação da rodovia BR-319 e a exploração de petróleo na Amazônia podem levar o bioma ao seu ponto de colapso e favorecer o surgimento não apenas de uma, mas de uma sequência de novas pandemias globais.
Na quarta-feira, 21 de fevereiro, o senador da República Plínio Valério proferiu ataques gratuitos contra nós na tribuna, utilizando diversos xingamentos e ainda disseminou inverdades sobre a rodovia BR-319.
Este texto tem a finalidade de combater o negacionismo científico e informar, antes de tudo, o eleitor, para que possamos escolher representantes mais conscientes e que não neguem a ciência. Alertas epidemiológicos têm sido ignorados pelos tomadores de decisão e políticos de Manaus, como o alerta de segunda onda de Covid-19, o qual também foi publicado na Nature e também coordenado por mim. Entretanto, este novo alerta epidemiológico não tem sido emitido apenas pelo nosso grupo.
Pelo menos outros três estudos científicos de grupos independentes, publicados nos Anais da Academia Brasileira de Ciências, Science Advances e Regional Environmental Change, já alertaram para o risco de surgimento de uma nova pandemia na Amazônia devido a saltos zoonóticos. Saltos zoonóticos são infecções causadas por vírus, bactérias, fungos, parasitas e até príons, que estão naturalmente presentes em alguns organismos e podem se espalhar para outros, incluindo humanos, por meio do contato direto ou através de alimentos, água ou meio ambiente. Esses saltos zoonóticos ocorrem principalmente quando há aumento do desmatamento ou da degradação florestal em áreas biodiversas, onde os reservatórios desses patógenos passam a ter contato direto ou indireto com outros organismos capazes de hospedar o patógeno. Este vasto bloco de floresta, atravessado pela rodovia BR-319, e o Bloco trans-Purus, que deve ser acessado pela AM-366 a partir da rodovia BR-319, são considerados uma das maiores áreas biodiversas do mundo e, consequentemente, o maior reservatório zoonótico do mundo.
O senador chegou a dizer que na pavimentação nenhuma árvore seria cortada e que, se isso fosse demonstrado, ele renunciaria ao mandato. Pois bem, de acordo com uma nota técnica do Observatório da Rodovia BR-319, os ramais ilegais já superam em seis vezes a extensão da rodovia. Em um estudo publicado no renomado periódico Land Use Policy, foi demonstrado que o desmatamento tem aumentado ano a ano no trecho do meio da rodovia desde a emissão da licença de manutenção em 2015. O mesmo estudo mostrou que o trecho do meio da rodovia BR-319 apresenta uma taxa de desmatamento 2,5 vezes superior à observada em outros pontos da Amazônia.
Esse mesmo desmatamento foi responsável pelo aumento de 400% nos casos de Malária na região, um indicador do risco de saltos zoonóticos propiciados pelo desmatamento. Ou seja, mais de uma árvore já foi cortada e a degradação ambiental já tem aumentado endemias na área.
Podemos ainda ilustrar para o senador os danos causados pelo DNIT durante a manutenção da rodovia, como a remoção da vegetação e o assoreamento de corpos d’água, o que tem causado grande impacto na região e também aumentado os riscos de repercussões zoonóticas e vetores de transmissão de doenças.
Ainda temos que falar da epidemia de violência causada pela rodovia. Em um estudo de 2019 publicado no Environmental Conservation, editado pela renomada Universidade de Cambridge, o pesquisador Philip Fearnside, premiado com o Nobel, e eu, apontamos que a pavimentação da rodovia ligaria Manaus ao “arco do desmatamento amazônico”, provocando a migração para a região de mazelas sociais como trabalho equivalente à escravidão, conflitos de terras e assassinatos decorrentes desses conflitos.
Em 2021, em um segundo estudo publicado no mesmo periódico e liderado pela pesquisadora Maryane Andrade, foi demonstrado que não existe governança territorial na região e que órgãos de fiscalização como INCRA e IPAAM atuaram na legalização de áreas griladas. O estudo também apontou que o IPAAM concedeu licenças de extração de madeira a pessoas que sequer tinham titulação da terra, o que é proibido por lei. Posteriormente, estas mesmas licenças eram utilizadas junto ao INCRA para conseguir a titularização, fechando o ciclo de grilagem de terras na região. O processo de desmatamento ilegal é tão constante, como demonstrou também a Land Use Policy, que caminhões de madeira extraída ilegalmente são constantemente apreendidos; entretanto, muitos deles ainda chegam ao seu destino.
Os povos indígenas têm sido os mais afetados nesse processo. Em Tapauá, a Terra Indígena São João do Igarapé de Taumirim foi cortada por um ramal ilegal que se conecta à rodovia BR-319. Em Manicoré, castanheiras foram derrubadas para serem utilizadas como pontes, dando acesso a grileiros dentro de áreas de uso indígena. Essas áreas tiveram que ser abandonadas devido à ameaça dos grileiros.
Em uma expedição à rodovia BR-319 em 2021, ao adentrarmos um ramal ilegal em Humaitá, eu e a equipe nos deparamos com um homem executado e amarrado em uma vala. Eu pessoalmente levei a polícia de Humaitá à área. O corpo era de Nelson Antônio da Conceição, que havia prestado depoimento à polícia dias antes sobre um grileiro de terras que estava executando as pessoas que atraía para trabalhar em sua fazenda. Segundo a polícia, o grileiro e desmatador ilegal enganava seus trabalhadores no dia do pagamento e depois resolvia as disputas salariais com seu “pistoleiro”.
Neste cenário sem governança ambiental, com aumento da grilagem, aumento de zoonoses e risco de uma nova pandemia, temos que nos perguntar a quem interessa a pavimentação da rodovia BR-319. É fundamental combatermos o negacionismo e os negacionistas, a negligencia de riscos epidemiológicos já custaram muitas vidas a Manaus, ao Brasil e ao mundo, e a responsabilidade de uma nova pandemia que emerja na região será responsabilidade direta daqueles que atuaram no lobby pela rodovia, bem como aqueles que foram negligentes com os alertas dados.
Diante dos fatos apontados e considerando as falas do senador, queremos saber: quando Plínio Valério vai renunciar?