Representantes do agro levam informações falsas a desembargadores em audiência processual que define destino do Pantanal

Bacia do Rio Paraguai fica no pantanal mato-grossense (Reprodução)

15 de março de 2024

14:03

Lucas Ferrante – Especial para Revista Cenarium*

MANAUS – O Pantanal se encontra em luta pela sua sobrevivência e das suas futuras gerações devido à tentativa dos ruralistas de manter a Lei 11.861/22, que libera a pecuária nas áreas protegidas do bioma. Pareceres nos maiores periódicos científicos do mundo, como a revista científica Science, já demonstraram a inviabilidade da lei, que está nas mãos de um pedido de vista do desembargador de Mato Grosso, Márcio Vidal, conforme já abordado aqui na Cenarium.

No dia 8 de fevereiro, em sessão do Tribunal de Justiça de Mato Grosso, o representante da FAMATO (Federação da Agricultura e Pecuária de Mato Grosso), o advogado Rodrigo Bressane, proferiu argumentos falsos durante a audiência, atribuindo erroneamente a tragédia dos incêndios criminosos que assolaram o Pantanal a três causas: 1) o êxodo do homem pantaneiro devido à falta de viabilidade econômica em suas atividades; 2) a omissão do Estado por não estabelecer uma regulamentação adequada; e 3) a ausência de gado para consumir a biomassa. No entanto, nenhuma dessas afirmações é verídica, e são facilmente refutadas pelos fatos científicos.

Dados do MapBiomas revelam um aumento na área destinada à agropecuária e pastagens no bioma do Pantanal ao longo dos últimos dez anos, o que contradiz as alegações sobre o êxodo do homem pantaneiro e a suposta ausência de gado na região. Em um artigo publicado pelo periódico Environmental Conservation, editado pela Universidade de Cambridge e divulgado em 2019, o pesquisador e premiado com o Nobel, Philip Fearnside e eu apontamos que o relaxamento das leis ambientais relacionadas aos biomas brasileiros resultaria em um aumento do desmatamento e das queimadas. Em uma publicação no fórum da Nature Ecology and Evolution em 2020, destacamos que foi justamente uma regulamentação mais permissiva em relação à ocupação do Pantanal pela pecuária e a falsa retórica do “boi bombeiro” que contribuiu significativamente para os graves incêndios florestais.

O segundo argumento apresentado pelo representante da FAMATO também não se alinha com os fatos científicos. O advogado persiste em sua argumentação, citando um trecho de uma “nota técnica” questionável que sugere que a pecuária extensiva seria “a principal atividade adequada para o Pantanal”. Contudo, do ponto de vista científico, essa afirmação pode ser considerada irônica até mesmo por biólogos em seus estágios iniciais de formação, pois é fato que o boi é uma espécie exótica que não coevoluiu em conjunto com a vegetação da região, logo não tem como ser adequada para esta paisagem como se observa em outras regiões do mundo, como o Planalto Etíope onde o gado foi domesticado. Tanto as notas técnicas da Embrapa quanto as da Semas foram refutadas em um documento técnico que apresentei ao Amicus curiae do processo, bem como na publicação do periódico Science.

O fato de o representante da FAMATO levar argumentos falsos a uma audiência judicial sobre um assunto tão delicado expõe ainda mais as vulnerabilidades do bioma diante daqueles que defendem a pecuária em áreas que deveriam ser preservadas. É inadmissível o negacionismo científico ou representantes do agronegócio tentar inserir falsas narrativas em um processo que coloca em vulnerabilidade todo um bioma, tendo consequências para a vida humana. Como destacado pela Science, “Os tribunais brasileiros devem embasar suas decisões em informações técnicas e científicas e suspender imediatamente esta lei” (Science, Ferrante & Fearnside, 2022).

Preocupantemente, dois sindicatos vinculados ao Agro, o Sindicato Rural de Caceres e o Sindicato Rural de Poconé pediram para se juntar como Amicus curiae na ação direta de inconstitucionalidade da lei 11.861/22. Amicus curiae (amigo da corte) é uma expressão latina utilizada para designar o terceiro que ingressa no processo com a função de fornecer subsídios ao órgão julgador. Esta tentativa é mais preocupante do que benéfica, pois os motivos das duas instituições em influenciar o processo não são claros, podendo ser vista como uma tentativa de influenciar ou respaldar negativamente a decisão do desembargador Márcio Vidal em seu parecer para manter a liminar de inconstitucionalidade. O Ministério Público do Mato Grosso deve agir para bloquear a participação de qualquer entidade com possível conflito de interesses que possa tentar se juntar como Amicus curiae nesta ação de inconstitucionalidade.

O maior periódico científico do mundo, a revista Science, é claro em seu parecer, a lei 11.861/22 é inconstitucional e uma ameaça ao bioma e pessoas. A ciência tem que ser ouvida, e o destino do Pantanal está nas mãos do desembargador Marcio Vidal em ouvir ou negar a ciência revisada pelos pares.

*Lucas Ferrante é biólogo e pesquisador, mestre e doutor em biologia e ecologia, coordenou a publicação no periódico científico Science, apontando a inviabilidade e ilegalidade da lei 11.861/22 e autor da denuncia no Ministério Público requisitando a revogação da lei. Atualmente é o pesquisador brasileiro que concentra o maior número de publicações nos periódicos Science e Nature, os dois maiores e mais importantes periódicos científico do mundo.
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