Jornalismo ou entretenimento? Após 15 anos, ‘Caso Eloá’ retoma debate sobre responsabilidade da mídia

Em uma das janelas do apartamento, Eloá pedia para a mãe ficar calma. (Robson Fernandes/15/10/2008/Estadão Conteúdo)

05 de maio de 2023

14:05

Marcela Leiros – Da Revista Cenarium

MANAUS – No dia 17 de outubro de 2008, um caso criminal que parou o País teve um trágico fim. Foi nessa data que Lindemberg Alves, 22 anos, assassinou a ex-namorada Eloá Cristina Pimentel, 15 anos, à época, após mantê-la em cativeiro por mais de 100 horas. O crime foi abordado no episódio de retorno do programa Linha Direta, da TV Globo, nessa quinta-feira, 4, e colocou o assunto nos Trend Topics, assuntos mais comentados no Twitter, quanto à espetacularização da mídia e machismo na cobertura do caso.

Além de erros na condução, pela polícia, da negociação do cárcere privado da adolescente e de outros três amigos da jovem, a abordagem da mídia televisiva também foi apontada como um fator que pode ter colaborado para a morte da jovem. A cobertura em tempo real teve entrevista com o criminoso durante o cárcere privado, enaltecimento da personalidade de Lindemberg e romantização do crime — uso de expressões como “crime de amor” ou “crime passional”.

A apresentadora Sônia Abrão conversou, um dos comentaristas do programa torceu para acabar em “casamento” e Ana Hickman pediu para Lindemberg dar um tchau para câmera. (Reprodução/Redes Sociais)

A presidente da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), Katia Brembatti, observou que o episódio do novo formato do programa trouxe uma reflexão mais profunda sobre o papel da imprensa na cobertura do caso, considerado emblemático e que é constantemente estudado em universidades do País. “Ele costuma ser tratado nas faculdades de jornalismo para usar de exemplo do que não fazer em algumas situações”, explicou.

Para Brembatti, é preciso fazer a distinção entre o que foi jornalismo e o que foi entretenimento no “Caso Eloá”, já que enquanto veículos de comunicação responsáveis cobriram o caso seguindo as técnicas jornalísticas, programas de entretenimento transmitiram o caso sem critérios. Ela lembrou que a polícia cometeu erros, como não cortar a energia do apartamento onde os dois estavam, o que permitiu que o criminoso assistisse a noticiários e falasse com outras pessoas por telefone.

“Já tinha sido feita uma avaliação de perfil, já sabia [a polícia] que ele era vaidoso, todas essas questões envolvendo a divulgação do caso contribuíram para que ele se sentisse no centro das atenções“, observou. “Deveria fazer a transmissão do caso, mas nunca enaltecendo o agressor, nunca passando informações privilegiadas para ele e seguindo as técnicas dos modelos de negociação que são consolidadas mundo afora”, afirmou.

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Eloá Cristina foi assassinada por ex-namorado após 100 horas de cárcere. (Reprodução)
Quantidade e não qualidade

Pesquisadores da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) fizeram um trabalho de análise de mais de 800 reportagens publicadas sobre feminicídio no Estado de SC, entre 2015 e 2021. Na época do “Caso Eloá”, a Lei do Feminicídio ainda não existia, mas o crime tem características de homicídio “quando o assassinato envolve violência doméstica e familiar, menosprezo ou discriminação à condição de mulher da vítima”. Lindemberg e Eloá foram namorados e ele não aceitava o fim do relacionamento.

A pesquisa foi realizada nos anos de 2021 e 2022 e apontou que as reportagens focadas em um crime específico ouviam apenas a polícia e não traziam à tona as raízes da violência contra a mulher na sociedade, nem divulgavam os serviços disponíveis para denúncia e proteção. Além disso, era priorizado a quantidade de matérias em vez da qualidade da cobertura.

“Parece que tem certos problemas que a cobertura jornalística não consegue superar. Se mantém um certo modelo de cobertura que prioriza a quantidade de notícias a respeito desses crimes, em vez de um aprofundamento, de pautas mais aprofundadas a respeito do problema que está na base dos feminicídios, que é a violência de gênero”, explicou a coordenadora do estudo, a professora da UFSC Terezinha Silva à Agência Brasil.

Relembre o caso

Eloá Pimentel, 15 anos, fazia um trabalho escolar com três colegas no apartamento da família, em Santo André, na Grande São Paulo, quando o ex-namorado dela, Lindemberg Fernandes Alves, 22 anos, entrou no apartamento, em 13 de outubro de 2008, com um revólver de calibre 32. Ele agrediu com socos os meninos Iago Vieira e Victor Lopes e espancou Eloá com chutes e tapas.

A investigação apontou que Eloá e Lindemberg namoraram por dois anos e sete meses, até a menina terminar o relacionamento por não tolerar o ciúme e agressividade do rapaz. O assassino não aceitou a decisão da adolescente e passou a persegui-la, chegando a agredir a menina fisicamente. Ao não conseguir reatar com Eloá, o jovem passou a planejar matá-la, por não admitir que a adolescente vivesse sem ele.

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Logo no início das negociações, Victor e Iago foram libertos, depois de dizerem que estavam passando mal. Por outro lado, Eloá e Nayara ficaram no apartamento. A amiga da jovem foi liberada, na noite de 14 de outubro, ficando apenas com Eloá no apartamento. Mas, no outro dia de manhã, os chefes do Grupo de Ações Táticas Especiais (Gate) da PM, responsáveis pela operação, permitiram que a adolescente voltasse ao imóvel, a pedido de Lindemberg. 

O sequestro terminou, em 17 de outubro, quando agentes do Gate e da Tropa de Choque da PM explodiram a porta do apartamento e invadiram. Antes de ser imobilizado, Lindemberg atirou nas reféns. Eloá foi baleada na virilha e na cabeça. Ela foi levada a um hospital em estado grave e morreu no dia seguinte. Nayara foi alvejada no rosto. Ela deixou o local do crime andando, foi operada e se recuperou do ferimento.